As mordidas

Um menino morto, outros meninos mortos, por engano, e todos aceitam o engano. Nenhuma comoção, nenhum movimento em favor de acabar com os enganos. Aceitamos mortes por engano. Não a mãe do menino morto por engano. Não as mães que perdem filhos por engano.

ryan hewett
de Ryan Heweet 

Domingo de manhã, abro o feed de notícias pelo celular, antes mesmo de me levantar. Um péssimo costume. O primeiro título que leio trata da morte, por tristeza, da mãe de um menino morto, por engano, pela polícia. Mais um menino morto, por engano, por uma polícia que costuma se enganar com frequência, quando se trata de uma cor de pele. Uma mulher alegre, forte, que sempre superou os obstáculos da vida, sempre venceu as batalhas, dizia o texto, até seu filho ser morto, por engano.

Não foi por engano que ela morreu de tristeza. Não foi por fraqueza. Não foi por engano que seu filho morreu. Não foi. A dor daquela mulher me acompanhou em cada lágrima, que eu não tive como conter em um domingo de manhã. Eu não sou mãe, eu não sou negra, não sei me aproximar dessa dor senão como pessoa branca, ou seja, distante. Diante da consciência da tristeza que mata, não por engano, eu senti uma mordida e vi as marcas dos dentes, vi uma ferida que não foi no meu corpo, que estava tão longe de me atingir, branca que sou, mas era também em mim, sem o meu sangue escorrer.

Engano, tristeza, impotência, racismo.

Um menino morto, outros meninos mortos, por engano, e todos aceitam o engano. Nenhuma comoção, nenhum movimento em favor de acabar com os enganos. Aceitamos mortes por engano. Não a mãe do menino morto por engano. Não as mães que perdem filhos por engano. Nem mães, nem pais, irmãos, avós, tios, primos, amigos. Eles, sim, viram escorrer o sangue da mordida. Porque o engano é a boca que morde. O engano é a boca do racismo. A injustiça que abocanhou aquela família e muitas.

A injustiça tem braços, pernas, boca e olhos bem abertos, olhos que diferenciam a cor da pele. A injustiça tem dentes, caninos afiados, que alguns chamam também de engano. Um gigante com a boca cheia de dentes que deixam marcas de mordidas, feridas e mortes em tudo, em todos, até naqueles que se sentem protegidos em fortalezas de privilégios. E vejo que meus privilégios também me anestesiam, por isso senti a mordida, mas não senti meu sangue escorrer.

O engano vai da boca aos dentes do racismo, das justificativas torpes, das mortes por engano, engano que não se pune. Ela morde, mastiga, cospe e repete. Separa a pessoa em pedacinhos, retira a pessoa dela mesma, dissocia a mulher dela mesma. Morde, mastiga, cospe e repete. Aniquila a alma, o desejo de vida. Não há corpo que suporte uma alma assassinada a mordidas pelo racismo velado de um Estado. Morde, mastiga, cospe e repete. Ruminante, vai até o fim, até espoliar tudo daquele corpo, daquela vida, daquela mulher que o gigante quis fazer aceitar, quis obrigar a aceitar um engano. Não, mas a mãe não mordeu nem engoliu o engano. Ela não engoliu, a custo de morte, para que ninguém engula mais.

Texto originalmente publicado em Ponto Crítico: http://pontocritico.net.br/post/as-mordidas